São Paulo - Beber para aliviar a fome, inibida pelos enjoos vivenciados durante a bebedeira. E comer cada vez menos, para que o escape alcoólico não pese sobre a balança. Essa é a rotina das vítimas de transtornos alimentares (TAs) que apresentam junto com eles algum grau de dependência em relação ao álcool - quadro de comorbidade popularmente chamado de ‘drunkorexia’ (do inglês: drunk, que significa bêbado) ou anorexia alcoólica. O termo não é científico, mas já circula livremente pela internet e pelos consultórios médicos.
O termo já entrou na vida dos brasileiros através da novela "Viver a Vida", da TV Globo. Na trama de Manoel Carlos, a atriz Bárbara Paz é quem dá rosto às meninas que se refugiam no álcool para controlar o peso. "No Brasil ainda não há um núcleo especializado em ‘drunkorexia’, mas nos EUA o problema é mais difundido. Existem aqui, porém, centros de tratamento para anorexia ou para alcoolismo. Frequentei alguns como ouvinte, escutei histórias e conheci algumas garotas que sofriam de ‘drunkorexia’ sem conhecer o termo. São mulheres que não quererem engordar, mas quererem estar de bom humor. O álcool dá esse falso bem-estar momentâneo", conta Bárbara.
Para a atriz, a associação entre magreza e abuso de álcool adquiriu um perigoso ar de glamour. "Para entender isso, foquei no que estava próximo, como os bares, a noite paulistana e a academia de ginástica com suas mulheres magras. Ouvi várias vezes a frase: ‘ sou drunkoréxica’,dita sempre em um tom de felicidade. Essa expressão virou quase uma gíria, com a garota querendo dizer que é ‘magra e feliz’. Veja a cantora Amy Winehouse e outras famosas. Elas ficam ainda mais famosas por passarem meses em clínicas de reabilitação. Parece uma moda. E muitas garotas querem ser como elas", diz.
Não acaso, até o visual de Renata foi inspirado na cantora inglesa, com direito a cabelo volumoso no topo da cabeça. O mundo de Renata, personagem de Bárbara, também é cheio de purpurina. "Ela quer ser modelo, é uma atriz iniciante que vive próxima ao mundo da moda. Está doente e não sabe, não consegue focar na faculdade ou no trabalho, não é feliz com seu corpo porque acha que está acima do peso. Para cobrir os vazios ela bebe, mas sem se alimentar direito para não engordar. As coisas vão piorar porque essa situação vai desgastar ainda mais o relacionamento amoroso da Renata. No começo, ela bebe só um pouco, para saciar a fome. E sem que ela perceba a doença começa a aparecer. É aí que acaba o glamour e o brilho disso."
A fictícia Renata e também as moças de verdade que têm algum transtorno alimentar (como anorexia, bulimia e compulsão periódica) e se entregam aos drinques não são só alcoólatras. No estômago vazio, sobretudo o feminino, uma mera lata de cerveja é capaz de provocar sinais de embriaguez. "A mulher, por aspectos fisiológicos, absorve o álcool em velocidade 50% maior se comparada ao homem pois tem mais gordura e menos água no corpo para diluir o álcool", diz a médica Camila Magalhães Silveira, coordenadora do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).
Segundo Camila, nas mulheres a produção de uma enzima que ajuda a metabolizar o álcool (aldeído desidrogenase) tende a ser reduzida, o que torna a bebida ainda mais agressiva para elas. "Estima-se que um homem leve oito anos para ficar dependente do álcool, prazo que cai para até cinco anos entre as mulheres. Muitas anoréxica bebem para amenizar a dor e a angústia de não poder comer. Assim, embora a ‘drunkorexia’ não seja um termo científico, é considerada uma variação da anorexia."
Na avaliação da profissional, a ligação entre regime e abuso de álcool se explica pela falsa crença de que ele não engorda. Os drinques são, contudo, mais calóricos que muita guloseima: 1 grama de álcool fornece 7 calorias, enquanto que o açúcar, praguejado nos regimes, contém 4 calorias por grama. "Pacientes com transtorno alimentar acreditam que a bebida ajuda a controlar a fome pois provoca uma irritação na mucosa gástrica, levando a náuseas. Essa irritação estimula a produção de leptina, substância que atua na sensação de saciedade", diz Camila.
Coordenadora do Programa de Assistência à Mulher Dependente Química (Promud), serviço vinculado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Silvia Brasiliano conduziu um estudo para investigar a prevalência de TA em dependentes químicas. "Constatei que 34% das pacientes tinham esses transtornos. Nos EUA, estudos mostram que mulheres com TA têm oito vezes mais chance do que as outras mulheres de desenvolver um problema ligado ao álcool. A hipótese mais aceita para explicar essa relação é uma possível falha no controle dos impulsos, que se manifesta ora no consumo abusivo de álcool, ora no descontrole alimentar", analisa.
De acordo com Silvia, tentar suprimir a fome por meio do álcool é um mecanismo com efeito ilusório. "À medida que o corpo vai ficando resistente ao álcool, é preciso beber cada vez mais para se ter o mesmo efeito de antes. E isso acaba provocando ganho de peso", analisa. Ela lembra também que os primeiros sinais do quadro costumam surgir já na adolescência. "O consumo de álcool tem aumentado entre as adolescentes de 15 a 18 anos, e a expectativa é que esse índice se equipare aos números masculinos.
Nessa fase também são comuns alguns desvios alimentares, sobretudo métodos compensatórios muito rígidos, que no futuro podem evoluir para um TA. Há meninas que jejuam por um dia porque comeram uma batata frita, por exemplo."
Na opinião da psiquiatra Analice Gigliotti, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), bebida alcoólica e transtorno alimentar formam uma dupla explosiva. "É uma bomba-relógio. Anorexia e consumo de drogas, inclusive o álcool, são os dois distúrbios mentais que mais matam no mundo. E esses dois problemas se potencializam quando concomitantes no paciente, já que ambos diminuem a imunidade da pessoa", esclarece.
A psicóloga Fátima Vasques, do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas da FMUSP, lembra que todas as drogas, e não só o álcool, estão relacionadas a distúrbios alimentares. E diz que faltam estudos sobre o tema no País. "O que temos são números americanos, que indicam que até 33% das bulímicas enfrentam problemas com o álcool.Nesses casos, é usado por facilitar os vômitos, episódios que caracterizam a doença", diz. "Entre anoréxicas também é frequente a cocaína, que emagrece por cortar a fome", completa.
Boxe:
"FRASES"
Ouvi várias vezes: ‘ sou drunkoréxica’, em um tom de felicidade. É quase uma gíria, com
a garota querendo dizer que é magra e feliz" . - BÁRBARA PAZ, ATRIZ
Fonte:Abril
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