O filósofo Oswaldo Giacóia Jr. analisa a relação
humana com o movimento e o ócio e questiona se sabemos, de fato, quais são
nossas reais necessidades.
Uma antiga lenda oriental conta a história de um
jardineiro chinês, empenhado na difícil tarefa de cavar um poço. Com o árduo
trabalho, ele buscava obter água para regar um pequeno espaço de terra onde
havia plantado vegetais. Ao avistar a cena, um sujeito que passava por ali quis
ajudar. Contou, então, sobre a existência de uma ferramenta que tornaria a
empreitada mais simples e produtiva. O moderno dispositivo permitiria a
retirada de vários baldes de água por dia, com os quais seria possível irrigar
não apenas uma área restrita, mas todo o jardim. A resposta do jardineiro à
proposta surpreendeu. Irritado, disse que usar instrumentos mecânicos para
vencer o trabalho era tudo o que não gostaria de fazer. E, por fim, argumentou:
quem faz uso de mecanismos para suas ocupações diárias tem um modo mecânico de
sentir e pensar, e se comporta como se ele próprio fosse um mecanismo. “Sei
perfeitamente como esse dispositivo funciona. Mas tenho vergonha de fazer uso
dele e de me comportar dessa maneira”, bradou.
A fábula acima foi contada à nossa reportagem pelo
filósofo Oswaldo Giacóia Jr., livre-docente da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), para ilustrar o que considera uma das mais
importantes questões filosóficas contemporâneas: o comportamento do homem em
relação ao tempo. “Temos uma ilusão de controle absoluto do tempo que é uma
forma muito eficaz de evitar o enfrentamento da nossa condição finita. Como se,
ao dispor do tempo cronológico apontado pelo relógio, do nosso calendário e de
nossas obrigações, pudéssemos exercer alguma espécie de controle sobre a nossa
finitude”, afirma Giacóia.
Para o filósofo, somos levados a uma espécie de
fazer permanente – o que remete ao moto-contínuo, a hipotética máquina de
movimento perpétuo que desafia as leis da física. “Precisamos ter a sensação de
que estamos ocupados permanentemente, de que cada segundo da existência tem um
sentido e uma finalidade, e é necessário que seja preenchido com uma ocupação
útil”, diz. Afinal, segundo ele, para a nossa sociedade, tempo é igual a
utilidade econômica – e, por isso, não temos uma relação propriamente positiva
com o ócio, esse desconhecido que traz consigo um pesado fardo de culpa. Fazer
nada só pode ser traduzido em termos de lazer, como algo que compensa o excesso
de trabalho da semana.
Tente se lembrar da última vez em que saiu de casa
simplesmente para caminhar, sem algum objetivo acessório, como exercitar-se ou
desanuviar a mente. Caminhar apenas para...nada. Difícil recordar, não? Até
mesmo o “ócio criativo”, conceito criado pelo cientista italiano Domenico de
Masi, tem como principal objetivo manter a mente ativa para o trabalho. “O ócio
pelo ócio é algo absolutamente insuportável para a sociedade contemporânea. Ele
tem de sempre ser pensado como um meio em direção a uma finalidade. Isso mostra
que o século 21 está mesmo em seus últimos limites”, vaticina.
Se não estamos mais no início da revolução
industrial, em que todos os nossos movimentos tinham de ser absolutamente
calculados, se não estamos sob o chamado “fordismo”, em que toda atividade
tinha de ser mecânica, o que vivemos, afinal? “Vivemos o tempo do eterno faz
de conta. Passamos mais da metade das nossas vidas falando, agindo e nos
movimentando apenas para justificar que não somos inúteis, mas sem modificar
absolutamente nada daquilo que é essencial.”
Essa busca pelo movimento constante interfere de
maneira crucial na nossa relação com o mundo. Muito do que fazemos beira o
artificialismo. Nos fechamos em academias, por exemplo, mas a saúde muitas
vezes desempenha um papel secundário. “Para grande parte das pessoas que frequentam
esses lugares, levar uma vida saudável significa ter corpos malhados,
esteticamente belos, que atendam a padrões exigidos pela sociedade”, afirma
Giacóia.
Ele mesmo é um frequentador assíduo de academias. E
um observador e crítico contumaz da dinâmica mais comum nesses locais. Ele
chama a atenção para uma espécie de bloqueio sistemático da comunicação. “As
pessoas se colocam uma ao lado das outras em aparelhos, mas sem a menor
possibilidade de uma comunicação efetiva. Estão ali unicamente com o objetivo
de ocupar o tempo e produzir um padrão físico consumível, mas sem a menor
preocupação de se abrir para o relacionamento com o outro”, avalia.
Em contrapartida, as academias concentram uma série
de distrações – sons, imagens e equipamentos de última geração – que colocam as
pessoas o tempo todo em uma relação com algo fora de si. No fundo, você está o
tempo todo ensimesmado, mas, ao mesmo tempo, impedido de uma relação autêntica
consigo mesmo. Para Giacóia, a mais importante distração de si.
O movimento em espaço aberto
E se não nos encerrarmos em quatro paredes e
adotarmos as ruas e parques da cidade como palco para nossos movimentos? O uso
de bicicletas no espaço urbano, tema tão atual quanto espinhoso, nos traz a
possibilidade de retomar o contato mais próximo com o meio – e conosco? Para
Giacóia, não é bem assim. Na opinião do filósofo, muito do que se chama de
cicloativismo também é regido pelas demandas econômicas da sociedade. “As
pessoas compram equipamentos, bicicletas, e passam por um tempo a frequentar o
espaço público por uma espécie de imposição do politicamente correto. Estão, de
novo, preocupados com as tecnologias mais desenvolvidas, mais caras e atuais, e
muitas vezes permanecem distantes do fundamental em si mesmos”, diz.
Mas isso não invalida a importância do contato com
o meio. É necessário desenvolver nossa capacidade de perceber os apelos do
consumo. “É preciso saber detectar e compreender até que ponto somos sujeitos
dos nossos atos. Até que ponto nos movimentamos de acordo com as nossas reais
necessidades ou estamos simplesmente obedecendo a comandos exteriores”, conclui
Giacóia.
“Temos uma ilusão de controle absoluto do tempo que
é uma forma muito eficaz de evitar o enfrentamento da nossa condição finita.
Como se, ao dispor do tempo cronológico apontado pelo relógio, do nosso
calendário e de nossas obrigações, pudéssemos exercer alguma espécie de
controle sobre a nossa finitude”
Oswaldo
Giacóia Jr. tem diversos livros publicados. Entre suas principais obras
está Pequeno dicionário de filosofia contemporânea* , que traz
referências atualizadas e compactas sobre filosofia. O filósofo também
acaba de lançar Heidegger urgente* * , em que apresenta o pensador ao
público leigo e discute a atualidade de suas ideias.
* Pequeno dicionário de filosofia contemporânea,
ed. Publifolha, 2006, 183 págs.
* * Heidegger urgente, ed. Três Estrelas, 2013, 144 págs.
Fonte: fleury
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